draveTravessia de Drave, Regoufe a Covelo do Paivô

  • A luz inunda o meu quarto, arranca-me do sono profundo. Tudo está em silêncio, apenas os finos raios de luz que penetram pelas frinchas dos estores brincam na minha face e desenham pontos geométricos de luz. Estou muito confortável e quente na cama, e lentamente desperto antes do irritante toque do despertador. Espreito pela janela e o ar fresco da manha, que inspiro renova-me o sangue e enche-me de esperança para um novo dia que começa, apesar de estar uma manhã nebulosa de março. Passou apenas dois dias desde o início da primavera e o céu continua com tonalidades de cinza, e a decisão é difícil para os incrédulos, que o azul possa surgir.
  • Com o fim do inverno dá-se a chegada das primeiras chuvas da primavera e com ela, os vegetais começam a sua metamorfose, tornando a paisagem uma variedade enorme de novos tons e opções de coloridos. Os galhos e ramos, ainda despidos pelo general inverno, secos e acinzentados, começam a se misturar com tons variados de verdes e amarelos dos novos rebentos que começam a desabrochar. É um espetáculo sob a luz tímida da manhã. As estações ainda estão bem definidas ao contrário de outros países pelo mundo fora.
  • Se tivesse que criar uma paleta de cores para ilustrar esta época, usaria uma mescla de amarelo com verde sendo esta a cor predominante. Todos Os verdes são mais intensos e menos subtis que nas outras estações. Há uma irresistível vontade de colorir um pouco mais, e surge a imensa variedade de flores que se espalham pelos renovados prados primaveris. Lindo. É uma mais-valia, na composição equilibrada, que mescla a vegetação com as diferentes tonalidades de terra.
  • Hoje vamos percorrer uma região com a natureza em estado quase selvagem, que o tempo deixou quase ao abandono, mas que foi muito próspera no passado, e hoje traz à memória histórias passadas. O nome de Drave está envolto em misticismo, dai ser apelidada de Aldeia Magica. Se há magia não sei, mas o misticismo, existe pelo menos para mim. Já a visitei pelo menos 8 vezes e em todas elas encontrei algo novo cuja explicação só pode ser dada pelo criador.
  • Nesta travessia três aldeias foram vistas, revistas ou admiradas pela primeira vez conforme o gosto ou propósito de cada um.
  • Vou começar pelo início. A hora prevista, partimos com alguma tolerância no tempo de espera. A primeira paragem, em Oliveira de Azeméis, seguindo o trajeto por Vale de Cambra, até a sede concelhia das terras do nosso trilho: Arouca. Aqui uma paragem mais demorada, uma vez que era o último ponto de comércio, até ao início do nosso trilho: Alto de Gourim. O café quente acompanhado por um dos muitos afamados doces conventuais que Arouca tem para nos oferecer é sempre bem-vindo, e foi o que aconteceu com a maioria dos caminheiros. Eu aproveitei para visitar o posto de turismo com o meu amigo João e recolher informação sobre o nosso trilho e saber de outras novidades. Tal informação, espero, que me sejam úteis agora a escrever esta crónica. Tudo tem um fim e um princípio. O autocarro estava preenchido com os 43 caminheiros que responderam a chamada. A nossa paragem terminou e agora retomamos a parte final de acesso ao início do nosso trilho. Eu diria que o nosso trilho começa a chegada a Ponte de Telhe. É uma aventura fazer este trajeto até as proximidades da serra de S. Macário de autocarro. As vias estreitas, curvas fechadas e um pouco de fé para que não venha um veículo no sentido contrário, é o que se encontra pelo caminho. Passando já um bom bocado do corte que dá para Covelo do Paivô e deixando para trás as plantações de eucaliptos entramos num espaço de montanha e beleza natural.
  • Agora predomina a carqueja, ainda a espera da sua explosão de cor, e os afloramentos graníticos. A paisagem é deslumbrante e dá a sensação de que entramos noutro país. A vegetação rasteira típica de montanha.
  • Não tardamos a chegar ao desvio que leva a povoação de Silveiras, local onde passa o trilho rota das tormentas, e daqui ao Alto de Campelinho é um instantinho, levando-nos a atingir um dos pontos altos desta nossa primeira etapa. Daqui temos acesso ao Monte de Cortegaça e aos nossos pés a paisagem desce até ao vale do Rio Paiva. A nossa intenção não era fazer um desvio para a esquerda para o respetivo Monte, nem a direita em direção a povoação de Regoufe.
  • Seguimos a direção do Portal do Inferno. Passamos agora por uma zona de planalto, onde se pode ver pinheiros que ladeiam a estrada e alguns prados de montanha, onde nascem alguns ribeiros e ribeiras como é o caso do Ribeiro de Pousadela que desagua na Ribeira de Regoufe, cuja nascente também se situa no mesmo local. É também nesta zona que o Ribeiro de Covas do Monte vem buscar as suas águas, que o engrossa, mais perto da povoação. Bom, estamos já muito próximos dos mil metros e a neblina já se começa a sentir e a tapar a nossa visão, ainda longe daquilo que encontramos mais adiante. Diante de nós surge o ponto de passagem chamado de Portal do Inferno. O aproximar do tal fenómeno orogénico, leva aos pequenos gritos estéricos da Dona Irene, quando o autocarro projeta nas curvas a sua frente que saía fora da estrada. Mas, sempre controlado pela perícia e profissionalismo do motorista. Chegamos e paramos no Portal do Inferno. O nosso olhar perde-se na vastidão do horizonte. As indefinidas serras de Arada, Gralheira, Montemuro, Freita e S. Macário, cobertas pela névoa que o olhar menos conhecedor não distingue o seu território, mas que nos faz voltar aos primórdios da nossa memória humana no mundo e nos leva de volta à inocência genuína dos nossos primeiros passos na Terra. Não é o paraíso, mas que parece, não há dúvidas. Os Vales verdejantes que contrastam com paisagens agrestes e absolutamente despidas, as paredes rochosas e abruptas, permitem descortinar as “rugas” ancestrais que definiram a superfície do nosso planeta, há trilhos que nos levam ao nosso imaginário, com quedas de água, flora desconhecida e admirável, que se estendem até às margens de rios e ribeiras, de águas límpidas e frescas, que nos fazem sonhar, voltar e ficar.
  • É fantástica, e de todos os lados, para onde olhamos, jorra água que formam cascatas, que se precipitam montanha abaixo e vão engrossar os já existentes caudais dos ribeiros, ou criar novos como é o caso da Ribeira de Palhais que passa em Drave.
  • A serra é mágica! Apaixonante! A neblina que por vezes teima em não deixar contemplar o azul do céu, mas ainda assim as paisagens naturais, as aldeias típicas rurais são alguns dos mais belos cenários que se podem observar e são sublimes. São particularmente bonitas na primavera e início do verão, quando o planalto e parte das encostas se encontram cobertos pelas cores vermelho violáceo da urze e amarelo pálido da carqueja, é a serra em flor, interrompidas aqui e além por grandes e pequenas manchas de pinheiros e outro arvoredo. Há mais flora que se pode ver com o olhar mais atento. Os diversos bosques que se podem observar na margem de cursos de água dominados por amieiros, carvalhais de carvalho-roble e ou carvalho-negral assume particular destaque junto aos núcleos urbanos ou zonas de cultivo, que hoje estão em completo abandono ou semiabandonadas. E tudo aqui tão perto!
  • Estou a perder o meu caminho, a neblina adensa-se e a visibilidade encurta, mas o nosso destino está a menos de 5 minutos. Viajar de autocarro tem vantagem, de se poder usufruir da paisagem livre das preocupações da condução.
  • Estamos no território do lobo (Canis lupus signatus) que ainda vagueia por estes vales encaixados, cujo covil se situa na serra de são Macário. É uma das 60 alcateias existentes em Portugal e uma das mais ameaçadas, pelo facto de se encontrar muito próxima das povoações de Covas do Monte e Aldeia da Pena. A abundância de alimento, neste caso em especial o rebanho comunitário de Covas do Monte, leva a revolta da população e a sua prosseguição. Outro fator de relevo, são os incêndios, uma ameaça constante no verão.
  • Depois de desbravarmos o denso nevoeiro que pairava sobre as nossas cabeças e refreava os corpos, chegamos ao nosso destino. Juntamente com um grupo de escuteiros que se dirigiam a base da IV, deixamos para trás o autocarro e o alcatrão, percorremos agora um estradão em terra batida, salpicado por poças de água, que nos levava para a Aldeia de Drave.
  • Perto do céu, o horizonte está sem neblina, e os olhos alcançam tudo o que podem. Desfruta-se um panorama grandioso: onde emergem os imponentes relevos das grandiosas massas orografias que dominam a paisagem. Grande parte das encostas está recoberta por mato baixo, onde as urzes, a carqueja e a azinheira são os elementos principais. Nalguns locais mais inacessíveis ou poupados pelo homem ainda persistem retalhos de uma vegetação extremamente interessante, onde se misturam espécies de afinidades atlânticas, mediterrânicas e continentais. A grande ausência de vegetação arbórea de grande porte, é causa dos recentes incêndios que fustigaram a serra nos anos transatos.
  • Aqui iniciámos a nossa travessia: Drave, Regoufe e Covelo do Paivô. Para quem anda por estas bandas a caminhar a já algum tempo depressa se apercebe, que o nosso trilho é constituído por dois PRs (PR13 e PR14) da rede de trilhos pedestres da Câmara de Arouca. Adicionamos a este nosso trilho o acesso a Drave mais os três ou quatro quilómetros que nos separou desde Covelo de Paivô até o autocarro. Num total 14 ou 15 quilómetros que foram fantásticos!
  • Descemos pelo estradão que dá acesso a Drave, ao contrário daquilo que estava previsto, em seguir o caminho primitivo que ligava Gourim a Drave.
  • Ao longe, nas profundezas do vale, mesmo que encoberta pela linha do terreno está Drave. Ainda não se avista o seu pitoresco casario encravado no fundo do vale, mas os seus campos abandonados, que ladeiam a aldeia já se avistam formando uma paleta de tons terra e desta forma se distinguem na paisagem. Olhando um pouco a nossa esquerda, vemos a imponente escarpa que fica no sopé do Alto da cota, já por nós calcorreada e que damos o nome de trilho dos Incas. A vista perde-se no céu do horizonte fundido em cinzas com o verde dando uma cor indecifrável. Avançamos pela cicatriz deixada pelas máquinas pesadas que rasgaram novos caminhos para o mundo. Aos poucos o enigma é decifrado, e aos nossos olhos surge um pequeno ponto branco de linhas geométricas que sobressai do xisto negro como a fuligem e as casas são feitas de pedra de xisto mais claro, sendo a sua cobertura de xisto negro. Os arruamentos são irregulares como é fácil de constatar pelos trilhos do caminho, que as pedras mais irregulares, e que são uma constante, estão polidas e rasgadas, pelas rodas das carroças, e a aldeia situa-se no fundo da montanha. Praticamente isolado dos lugares vizinhos, com fracos acessos, impraticáveis durante o inverno que naquele tempo faziam o percurso de Drave para Regoufe e vice-versa. É certamente uma aldeia perdida na serra, uma aldeia mágica e encantada, que surpreende quem a visita. Vista de longe parece uma rocha sólida, não fosse a capela e o solar dos Martins a destoar nesta visão. É a altura de falar que os últimos habitantes destra aldeia foram um casal idoso que já partiram para o seio de Deus, e que durante muito tempo foram os únicos seres humanos num raio de 4 quilómetros. O Sr.. Martins e a Dona Ana. Cuidaram o melhor que podiam e sabiam desta aldeia.
  • O núcleo principal do lugar encontra-se implantado entre as cotas 600 e 630 metros, com grande parte das edificações organizadas em dois pisos, compreendendo um segundo núcleo de currais, na margem oposta da ribeira, de palhais. Em diferentes edificações, entre dependências habitacionais, há palheiros, currais de vacas e de cabras, casas da eira ou adegas. Muitas das vezes a rocha nua serve de suporte e parede as edificações. As vigas de madeira que suportam o telhado, hoje já muito degradado, o encastelamento de pedaços de xisto, e a lousa na cobertura eram o necessário para se fazer um refúgio para a vida ou para os animais. A importância da pedra local na construção é uma das características mais relevantes desta aldeia. É uma das povoações que melhor traduz a característica da implantação em vertente.
  • Já conheço Drave a alguns anos e de entre muitas das histórias que podia contar, há uma que ainda hoje, a memória me vem quando o seu nome é pronunciado.
  • Um certo fim de semana, foi acampar em Drave juntamente com um grupo de escuteiros. Como em todos os acampamentos de escuteiros há o fogo de conselho e no fim cantou-se a Auld Lang Syne e as lágrimas caiam pelas minhas faces, não sei explicar porquê. Quando percorria as ruelas estreitas e que parecem não ter lógica a minha memória encheu-se de recordações. Há histórias ou pequenos fragmentos que cada um de nós tem no seu subconsciente, que se revelam à medida que vamos avançando no caminho.
  • Aldeia de Drave traduz-se numa realidade de vida muito rude e de muito trabalho, gloriosamente desempenhada pela população que lá vivia. A povoação teve o seu princípio, como todas as outras, porém, como e quando, é o que totalmente se ignora. Cercada de enormes e altas montanhas, que, no coração do inverno, lhe vedam o sol a maior parte do dia, tendo apenas uma garganta da parte do poente; e ainda assim obstruída pelas serras, que se entrelaçam. Situada entre a confluência de três ribeiros, sendo estes, a ribeira de Palhais, que, correndo do norte, a banha do lado direito, - o Ribeirinho e o ribeiro da Bouça, que descem do lado esquerdo e se juntam todos os três no fundo da povoação. É precisamente aqui que considero a passagem do antigo para o moderno, há uma escadaria de xisto que leva a uma ponte de madeira, onde atualmente se fazem os acampamentos, em contraste com a fria pedra sem cor, com as tendas de cores alegres de onde se avistam a longos quilómetros de distância. Se o processo de recessão demográfica levou ao abandono e à ruína desta aldeia e de outros pequenos lugares serranos, acabariam, assim, por se converter em povoações de ocupação sazonal. Este é também o caso do lugar da Drave que, perdendo os últimos residentes no início da década de 1990, tem assistido, por um conjunto de circunstâncias diversas, a um interessante processo de conservação de algumas edificações tradicionais e de uma parte significativa do património construído local por parte do corpo nacional de escutas, fazendo aqui a base nacional da IV. É por este motivo que se avistam muitos escuteiros nesta paragem.
  • Quaisquer que seja a sua particularidade estética ou o grau de tipicidade, revela histórias e memórias de tempos imemoriais, e que hoje vai resistindo aos desígnios e à evolução dos tempos.
  • Perco-me nestas pedras que sobrepostas umas nas outras formam este espaço magico e distante do mundo. Aqui a civilização como a conhecemos, cheia de tecnologia, perde todo o seu poder, salvo as máquinas fotográficas, até perderem todo o seu fulgor de energia.
  • Podia passar horas a descrever a Aldeia mas mais do que palavras é a nossa presença no local, e essa só alguns mais aventureiros a puderam concretizar. É hora de partir e deixar para trás os segredos guardados nas pedras mudas e frias.
  • Deixamos para trás a ribeira de palhais e o núcleo de casas e partimos em direção a Regoufe pelo trilho do PR14, nalguns locais não existe solo, e o estrato herbáceo é bastante pobre, mas apenas um chão de pedra solta. Liberdade, descoberta, descontração, convivência e emoção, são sensações que estarão sempre presentes ao longo do nosso trilho. Na curva do nosso trilho a aldeia esconde-se para ficar esquecida por uns tempos e deixa-se embalar pelo esquecimento. Os últimos sinais da presença humana ficam para trás e aparecem sinais dos regressados esquilos mesmo que não se deixem fotografar. Voltamos a serra esquecida e o solo pedregoso pelos fragmentos de xisto abundante por todo lado. Carqueja e mais carqueja é tudo o que os olhos alcançam e mesmo antes de atingirmos o topo da subida, eis que timidamente se aproxima uma cabrita e mais outra e de repente surge um rebanho pela encosta abaixo, seguido pela pastora. O rebanho comunitário de Regoufe. A paz de quem faz desta arte a sua vida e ganha-pão. Quando era pequeno gostava de ser pastor, andar ao vento pela serra, mas hoje tenho opinião diferente. Só um diazinho para experimentar. Descobrir os encantos da serra para melhor explorar e desfrutar das suas belíssimas paisagens, dos vestígios da sua longa história, dos tesouros geológicos de que é guardiã, das atividades em pleno contacto com a natureza acho que é a melhor maneira. São experiências gratificantes e enriquecedoras para todo e qualquer um que se queira habilitar, conhecer os saberes e sabores serranos e da simpatia das suas gentes.
  • Com estes pensamentos cheguei sem esforço ao Mato de Belide. Daqui posso ver ao fundo a aldeia de Regoufe, com as inconfundíveis minas, e nas minhas costas o vale o rio Paivô, agora que já se juntaram as águas da Ribeira de Palhais e que corre em direção a Covelo do Paivô. As casas como em Drave contornam a encosta que fica sob o sopé das minas. A encosta salpicada pelas cores que revestem a alvenaria das casas esconde a rusticidade da casa primitiva serrana e acompanha a evolução dos tempos. O acesso a dita aldeia faz-se por um caminho de cabras muitíssimo sinuoso de fragas incrustadas no caminho pedregoso com xisto solto à mistura, e que dificulta este percurso pedestre, e requer uma redobrada atenção. Entra-se na aldeia por uma ponte que atravessa a ribeira de Regoufe e que dá acesso a um estreito caminho, que nem sempre é próprio para se andar a pé. Avançamos pela aldeia adentro e as ruas estreitas, e as calçadas “à portuguesa”, por onde dá vontade de passear e descobrir, denunciam a antiguidade das suas origens e nos transportam a tempos recuados da sua longa existência. Os habitantes, hoje menos jovens preservam, com afincada dedicação, as tradições, usos e costumes, agrícolas, etnográficos e culturais da aldeia. Outrora proliferava um formigueiro humano, sujo, malcheiroso, magro, desgrenhado que deixava o seu trabalho de mineiro nas minas de Regoufe e se dirigia as suas casas, muitas delas ainda hoje habitadas por familiares ou mineiros dos tempos idos. É esta a melhor forma de conhecer um destino percorrendo-o, a pé, as suas calçadas, caminhos, veredas e levadas. É sentir a emoção de observar e viver de perto o seu património natural, cultural e edificado, conviver com as suas gentes e poder recuar no tempo até às épocas mais remotas da sua história. é poder guardar e levar connosco as memórias dos locais visitados, dos caminhos percorridos e dos momentos passados para os descobrir. Hoje passados muitos anos do seu encerramento, estamos num dos locais mais emblemáticos do período áureo da exploração mineira. A atividade mineira deixou marcas profundas, que marcam, as gentes que as habitam, habitaram, ou ainda o que resta das pedras que “sobreviveram” nestas aldeias mineiras espalhadas pelas serras circunvizinhas. Nasceram aldeias e um vasto património edificado, hoje, na sua maioria em ruínas, graças à instalação e fixação de importantes complexos mineiros. Nós estávamos dentro de uma dessas aldeias e despertava em nós um momento de refazer forças e uma paragem. Junto ao mais recente investimento na área do comércio, diga-se, que em boa hora lá estava para nos recostamos junto as suas paredes e ai reforçamos o nosso organismo.
  • Tudo tem um fim, e mais uma vez nos lançamos para aquela que era a nossa última etapa: a senda do Paivô. Depois de andar-mos as voltas pelas ruelas, até encontrarmos o caminho, e era urgente avançar depressa, até porque o horizonte tinha mudado de cor cinza para negro e este aproximava-se a passos largos de Regoufe, ainda há tempo para ver a tradição da matança do porco. Não na sua fase critica mas já quando largava o espírito para uma nova reencarnação. Esta é uma das tradições que se repetem dos tempos imemoriais. Talvez tenha algum significado nos tempos de hoje aliado a crise. A interpretação fica ao critério de cada um.
  • Antes de avançarmos é de salientar que transitamos do xisto para o granito. A paisagem granítica e mais heterogénea e porventura mais bela. As serranias são de cumes irregulares onde se destacam enormes fragas e amontoados de penedos. Ao contrário do xisto, no espaço entre rochas há pequenos tufos de erva que crescem, uma vez que o granito e o musgo mantêm uma relação amorosa que com o tempo esse musgo cresce sobre a rocha causa desgaste na mesma por meio de substâncias produzidas por sua atividade biológica, permitindo que outros vegetais também cresçam ali. Não é de estranhar que os primeiros colonizadores das rochas sejam os musgos e que apresentam grande importância ecológica. Desta forma os musgos, atuam como reservatórios de água e nutrientes, oferecem abrigo a micro-organismos e são viveiros para outras plantas em processo de sucessão e regeneração. Junto as ditas rochas podem ser encontrados os fofos e húmidos musgos, que com o tempo dão lugar as extensas turfeiras. Estes apresentam grande importância ecológica uma vez que são indicadores de poluição e biodiversidade. A sua fixação no solo alem de reduzir o processo erosivo, é também um apoio a fixação de novas plantas. o xisto escoa melhor a água e não permite a fixação com facilidade de plantas. Mesmo assim há rochas povoadas por vegetais com estratos herbáceos e arbustivos limitados, especialmente nas fendas das rochas e superfícies com cobertura muscícola. Eu gosto de ambas, uma completa a outra.
  • Já que falamos em humidade, é a hora de dizer que as primeiras chuvas do nosso trilho vêm suavemente ao nosso encontro. Primeiro, tímida e envergonhada depois com confiança. Depressa se cansou de incomodar estes prevenidos caminheiros e partiu passado pouco de tempo.
  • Conforme documentam as fotos, os primeiros chuviscos deram-se no momento em que atravessávamos uma ponte simples. A linha de agua não era de grande abundância mas a laje de granito assente numas pedras dá vida ao local, que acompanhado de fundo por socalcos suportados por muros de granito e embelezados por carvalhos e castanheiros. É um cenário já visto, mas, muito agradável. O momento era de descontração e alegria apesar de ser este o início dos primeiros chuviscos, é nas dificuldades, que estes caminheiros demonstram boa disposição e alegria. O colorido das capas contrastava com a cinza das pedras e o verde deslavado da vegetação em redor. O gorgolhar da água límpida e corredia marcava a melodia sagrada e divinamente orquestrada.
  • Era sem dúvida um momento inesquecível. A nossa frente, por entre um caminho ladeado por muretes de pedra solta e orgulhosamente colocados, nós avançamos, para fora da aldeia, por caminhos já muitas vezes calcorreados por gente humilde e trabalhadora. Contam os mais vividos nas lides do minério, que muitas vezes os mineiros se juntavam com os de Rio de Frades ou vice-versa com os de Regoufe, e este era um dos caminhos de acesso a qualquer uma das partes. Acho que é hora de falar um pouco desse mistério que é as minas de volfrâmio. No período de 1939 a 1945, formigavam trabalhadores e aventureiros que, pelos vales e serras, granjeavam algumas “pintas” do afamado volfrâmio – o “ouro negro”. Desta forma, garantiam o sustento do lar, amealhando pequenas fortunas de dinheiro, num contexto socioeconómico marcado pela escassez de recursos a diversos níveis. A crescente procura de minério, imprescindível para sustentar belicamente os dois blocos beligerantes permitiu que se tornasse palco para a irónica convivência vizinha da Alemanha e Inglaterra, gravando na história um período riquíssimo do ponto de vista histórico e sociológico.
  • Volvidas algumas décadas, após o término da segunda guerra Mundial, ainda permanecem vivas histórias de pessoas que de forma direta ou indireta se relacionaram com a exploração do volfrâmio. Aqui deixo um pequeno excerto de uma entrevista com um desses antigos mineiros Manuel Granja dos Reis, mais conhecido por Sr. Neca da Pedreira, que retirei da revista MAGazine nº3: “Começou a trabalhar nas minas com 10 anos e “já ganhava dez escudinhos”. Passou por quase todas as profissões existentes na exploração das minas. Foi escombreiro, mineiro de 1ª e mineiro de 2ª “queriam meter-me no martelo mas… não menino! Eu vejo gente aí a morrer e por isso não quis”. Vivia numa das casernas cedida pela Companhia e regressava à casa dos seus pais apenas durante o fim de semana. Apesar de a Companhia garantir alojamento para os mineiros, as condições de salubridade não eram as desejáveis: “era um ninho de porcos, era piolhos, chatos e percevejos, toda a raça, escondiam-se nas pregas da roupa e a gente via-se à rasca. Os marteleiros iam todos sujos, tínhamos que vir cá fora sacudir a roupa. Depois fizeram uma caserna só para marteleiros e ajudantes”. Apesar disto, o Sr. Neca da Pedreira considera que as freguesias de Regoufe e de Rio de Frades eram “muito industrializadas”, graças aos investimentos das duas grandes forças inimigas, “era tudo iluminado, não faltava nada. Tinha posto de socorro com médico e enfermeiro, tínhamos cantina, andavam por lá mais de quinhentas pessoas” (...) Tinha catorze anos e fui trabalhar por minha conta. Eles traziam terra do monte, mas via-me à rasca no inverno, era duro, com a água gelada. Tínhamos dias que corria bem, 1kg e tal já dava seiscentos paus, vendíamos aos compradores, era ao pilha e andava lá sempre quem comprasse. Havia lá pilhas de Valongo, eram como uma companhia, chegavam a tirar 2.000 kg por dia, a seiscentos paus…aquilo é que era.” Na mesma revista o Sr. Manuel da Granja conta mais histórias em torno dos devaneios de gastadores que, tendo na sua posse quantias avultadas de dinheiro, gastavam-no de forma desmesurada…” fumavam notas de cem e até de quinhentos e chegavam à vila, só havia o Armandinho para tomar café, estava cheio e iam ao Porto. Chamavam um carro de praça e pronto! As notas nas mãos deles e nos bolsos não cabiam”.
  • Como se pode ler, do solo deste local e das montanhas que o envolvem foram extraídas e exportadas toneladas de volfrâmio, sobretudo para as Forças Aliadas, servindo para o fabrico de material bélico, uma grande parte do qual utilizado durante a II Guerra Mundial. Durante esse período, as minas foram concessionadas a empresários ingleses que faziam a sua exploração. do mesmo modo em Rio de Frades eram os Alemães, e mantinham entre eles uma amizade e convívio irrepreensível. Muitas das ruas foram abertas em conjunto e trazida a eletricidade e o telefone. Naturalmente que esses benefícios ainda hoje existem, mas há outros que nesta caminhada nos vai ser úteis, falo naturalmente do caminho que liga Regoufe a Covelo do Paivô. As grandes lajes que acamam o caminho e que seguem em direção a Paivô, o lugar de destino, estão profundamente marcadas pelo desgaste das incontáveis passagens dos carros de bois, a lembrar histórias já esquecidas. É trilho ao meu gosto, sem levar a enganos e bem vincado nas curvas de nível. É uma verdadeira obra de artesãos. Este caminho, apesar de o tempo que se tem mantido instável e a grande humidade que prolifera pela serra nestes últimos dias, mesmo assim o granito é mais fiável do que o xisto, na questão das escorregadelas. Houve algumas nesta caminhada, principalmente na primeira parte do trilho onde reinava o xisto.
  • O vale seguia ao nosso lado esquerdo e era o leito da Ribeira de Regoufe. Bem vincado nas rugas da serra que o tempo foi deixando. Ao longe, agora defronte dos nossos olhos o celebre penhasco do trilho dos Incas e as eólicas do Alto da Cota. Mais próximos de nós, está o Corucho da Pena Ruiva, um monte, que separa as águas do Rio Paivô, do nosso lado, e às da Ribeira do Paivô do outro. É um monte com muitas histórias para contar, aquando da nossa travessia da Freita. A nossa Ribeira que nos tem Acompanhado desde Regoufe , ao fim de cerca de dois quilómetros entrega-se nos braços do rio Paivô, que irá acompanhá-lo até Covêlo de Paivó. Estas linhas de água marcam fortemente toda a paisagem ao longo do percurso, sulcando um vale de grande beleza.
  • Pelo caminho há penedos que lembram ovos gigantes, e outros que parecem estar a espera de um pequeno empurrãozinho para se precipitarem sobre nós. Temos respeito pela natureza e isso faz-nos voltar, muitas vezes brincamos com ela, mas respeitamo-la. O olhar mais atento descobre no fundo do vale algumas ruínas nas proximidades do rio, o que leva a crer que fossem moinhos ou alguma habitação isolada dos olhares mais indiscretos. É outra história, e a nossa é chegar a Covêlo de Paivô. Este espaço em que entramos agora revela alguma agricultura e os pinhais são mais densos e tratados, o que revela a presença humana nas proximidades. Ao levantar o olhar, lá no fundo do vale aparecem as primeiras habitações. Os campos de cultivo, ladeiam o Ribeiro de Cacus e uma pequena ponte, encaminha-nos para o centro da povoação.
  • A esta freguesia pertence Regoufe e Drave e este trilho que acabamos de fazer é uma das ligações entre as várias povoações. Hoje o automóvel aproxima as povoações em tempo. A Freguesia de Covelo do Paivô não é muito grande e a sua população é proporcional ao seu tamanho conforme se verifica pelo tamanho do cemitério local.
  • Chegamos a pequena capela local, era sinónimo do fim do trilho. Aqui repousamos um pouco, e reunimos forças. Um rápido olhar sobre a povoação vê-se que o seu casario cresce em cascata da mesma maneira que Regoufe e Drave, está voltada a sul. Estas povoações têm invernos rigorosos e verões secos, deste modo no inverno aproveita-se os parcos raios de sol para minimizar o frio e dar algum conforto a rude vida.
  • Deixamos a pequena capela e dirigimo-nos ao local do autocarro, percorrendo a povoação por ruelas estreitas e sombrias. Contornamos o casario e do mesmo modo o rio Paivô nos acompanhou até ao suposto local que o autocarro estaria.
  • O rio, esse, continuou o seu curso habitual e a algumas centenas de metros juntou-se ao rio de Frades, onde tiveram a oportunidade de por a conversa em dia.
  • -Onde está o autocarro? Foi sem dúvida alguma a pergunta que mas se ouviu naquele momento. Talvez esteja parado mais a frente. Levantamos trouxas e nos metemos procura do dito cujo. Um telefonema para o motorista resolve. Não há rede. Ups! E agora, só resta avançar mais um pouco e apanha-lo mais a frente. A estrada sobe, continua a subir, não há nada a fazer. Avançar, é a palavra de ordem. Vencida a primeira subida, por algum tempo não aparece o autocarro. Desfizemos a primeira curva, segunda curva, chega a terceira curva, aparece desmandada uma vaca, ai menino...nem sabia onde me meter. Num segundo o grupo fica desfeito uns para cada lado, lá passou e não houve cheiro a “urina”. São estas coisas que acontecem a quem por lá anda. Quem não ficou muito contente foi a pastora, que calmamente andava com os headfones na cabeça e dizia ela volta. Com este pequeno incidente até nos esquecemos do cansaço. E continuamos, até ouvirmos o som de um motor, ficamos na expectativa, até surgir o autocarro na curva. Depois deste pequeno contratempo, subimos a bordo com um sorriso de orelha a orelha. Foi agradável.
  • Depois de recolher todos, partimos em direção ao centro de Arouca, ai dispersamo-nos pela vila a procura dos doces conventuais. Se mais houvesse mais ia. São poucos os momentos que temos a nossa disposição na vida, e não vale a pena andarmos a desperdiça-los. Espero voltar a velos numa próxima caminhada.
  • Não quero fazer da escrita um ato solitário, ou colocar as palavras em folhas soltas lançadas ao vento. Antes pelo contrário, quero deixa-las sem cordas onde possam fluírem e escolherem o seu leitor. Desta forma espalho os conhecimentos que adquiri e vivi, e estou certo que outros recordarão estas passagens com saudade.
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