valeglaciarzezereVale Glaciar do Zêzere

  • As ondas de calor caminhavam pela noite dentro, e enchiam o quarto, com um calor insuportável. A luz pálida do luar refletia-se em formas disformes e indecifráveis que ainda anunciavam a noite.
  • Ainda longe do amanhecer, o corpo suado e desesperado, buscava pensamentos reconfortantes e frescos que ajuda-se a entrar num sono rejuvenescedor.
  • Amanheceu. Com umas olheiras tipo Vítor Gaspar, consegui pôr-me de pé e tomar um banho, com o intuito de despertar.
  • Era sábado, no calendário estava registado dia 6 de julho de 2013, com uma nota sublinhada: rota do glaciar – serra da estrela.
  • É disto que eu quero falar. No programa do ANDAR, estava um dos nomes sonantes do território de Portugal – a serra da estrela – que só por si já era um bom motivo para esta caminhada. O certo é que 15 dias antes já estava completo o autocarro, mas por vários motivos houve algumas desistências e aproximadamente cerca de trinta caminheiros, tiveram o privilégio de calcorrear nesse dia as encostas e o vale glaciar do Zêzere. Foi Camões que escreveu, referindo-se à parte mais alta da Serra da Estrela, "onde a terra acaba e o céu começa".
  • Uma questão se coloca aqui: o que leva este vale a ser tão procurado? Em Portugal apesar de não ser tão grande existe uma grande quantidade de vales que cicatrizam as serras e qualquer um deles pode ser agradável calcorrear. Este é especial. Vejamos então o porquê. Na eleição das “7 Maravilhas Naturais de Portugal”, foi finalista, o que fez com que os amantes da natureza e as associações ao seu redor o promovessem. O percurso acompanha o refrescante Rio Zêzere, entre quadros que emolduram o azul do céu e o verde do Vale que ao longo do Vale do Zêzere faz-se percorrendo uma rota aberta na última glaciação, num cenário de singular beleza, é um dos melhores exemplos da modelação da paisagem pelos glaciares. A sua forma em “U” deve-se aos gelos que formaram uma cúpula no cimo da montanha de onde divergiam línguas que escoavam pelos vales periféricos. Apesar de se tratar de um vale glaciar e por isso muito aberto, as encostas são muito íngremes, cobertas de bolas graníticas e caos de blocos, principalmente na base das linhas de água.
  • Era isto que procurávamos ver nesse dia. Mas para verdadeiramente conhecer a Serra e toda a sua beleza, para apreciar os encantos ocultos de um vale ou de uma penedia é preciso dar liberdade aos pés para calcorrearem os carreiros por onde passam os rebanhos, para trepar uma pedra, para pisar a erva ou o musgo macios.
  • Mas o dia começa com a viagem de autocarro, essa que correu bem, apesar das temperaturas altas. Todos os dias o ser humano deixa marcas na Terra, e nesse fim de semana mais um punhal foi cravado na mãe natureza. Os incêndios foram constantes e as estradas por onde passamos estavam envoltas em fumo e as pegadas que a humanidade deixa no planeta marcam a sua história para sempre. Lentamente continuamos o nosso caminho, primeiro, deixamos para traz Viseu, e de seguida lançamo-nos encosta acima ao ataque a Seia.
  • Uma paragem antes de darmos movimento as pernas, numa loja de comércio, junto ao desvio que leva ao museu do pão, soube muito bem. Colocado num ponto estratégico no caminho para a serra, este ponto de comércio ganhou com a nossa paragem. Entrar, receber o odor do cheiro a queijo ou passear pelos corredores cheios de peles, é como se estivéssemos em plena serra da estrela, e penetrar no ambiente típico desta região. A paragem não foi demorada. Pouco depois estávamos a passar ao Sabugueiro em direção a lagoa comprida. O caminho que nos leva a torre, ponto mais alto do território continental, (1993 m, D. João VI mandou erigir a torre, toda em pedra, para completar os 2000 m de altitude), estava deserto, o mesmo não acontece no período de inverno, onde filas de carros procuram ver o branco frio da neve e deliciar-se com brincadeiras infantis.
  • Chegamos a torre, ponto de referência nos desportos de inverno, no nosso território. Estava deserta, e a dificuldade do motorista estacionar aumentou, porque a probabilidade era de 100/1. Depois de nos apearmos e nos aperaltamos com cremes protetores e as respetivas mochilas, ainda houve tempo de tirarmos uma foto de grupo, para a posteridade.
  • Ainda embriagado pela condução a maneira inglesa, lá demos uma voltinha a rotunda, conforme manda a condução britânica para assim irmos parar ao mesmo local. Sem dúvida que estamos num mundo a parte, sempre comandados pelas mais altas esferas europeias. Desculpem o desabafo. Depois desta circulação gratuita, avançamos no nosso percurso.
  • Estamos no andar superior o que lhe confere características especiais. O Andar superior, correspondente ao domínio do zimbro (Juniperus communis L. spp. Alpina (Suter) Celak), acima dos 1500 metros. Este andar comporta, ainda, dois tipos de cervunais: os cervunais secos, cuja espécie dominante é o cervum (Nardus stricta L.) e onde podem ocorrer outras espécies como as campainhas amarelas (Narcissus bulbocodium L. var. nivalis (Graells) Baker), e os cervunais húmidos, que se distinguem dos primeiros pela riqueza em musgos e em Aulacomnium palustre Schwaeg e onde surgem, entre outras espécies, a Gentiana pneumonanthe L. A natureza, aqui, com paisagens agrestes e absolutamente despidas, onde a paisagem desolada pouco pode oferecer, permitindo descortinar os ancestrais movimentos tectónicos que definiram a superfície do planeta contrasta com os vales verdejantes que predominam no andar basal.
  • A Serra da Estrela é constituída por planaltos alongados na direção SW-NE. As altitudes mais elevadas encontram-se do lado Sudoeste, no chamado Planalto da Torre, onde se atinge a maior altitude. Gradualmente vão diminuindo para Noroeste, até que, por alturas da Guarda, a montanha quase se confunde com os planaltos da Beira Transmontana. Isto significa que a Serra da Estrela é sobretudo imponente do lado Sudoeste, levantando-se dos planaltos e depressões circunstantes por vertentes de várias centenas de metros de altura.
  • Este dispositivo geral da topografia é devido, essencialmente, a deslocações tectónicas, que levantaram a montanha dos planaltos envolventes e a balançaram para Nordeste. As escarpas que a limitam são escarpas de falha, com uma evolução relativamente longa, que devem ter dado origem à atual Serra da Estrela há, pelo menos, 200 milhões de anos.
  • No entanto, os grandes desníveis que se observam na Serra da Estrela não são devidos, apenas, a deslocações tectónicas. Eles devem-se, em grande medida, aos profundos entalhes dos rios, induzidos pelo próprio levantamento da montanha, a partir dos planaltos marginais. Por sua vez, as falhas que cindem o interior da montanha são também responsáveis pelos entalhes fluviais mais profundos, pois o esmagamento tectónico das rochas facilitou o encaixe dos rios.
  • Mas, se descermos algumas dezenas ou centenas de metros apenas, as formas de terreno que observamos a cada passo podem ter origens bem diversas. Umas dependem da natureza das rochas, nomeadamente das rochas graníticas, outras estão relacionadas com climas muito mais frios que o atual, que ocorreram no Quaternário recente, particularmente acerca de 20 000 anos, em que a temperatura atmosférica desceu pelo menos 10ºC e a parte mais alta da Serra da Estrela ficou coberta por glaciares. Exemplo disso é o majestoso Vale do Zêzere, a montante de Manteigas. Isto significa que, na formação das linhas gerais do relevo da Serra da Estrela, houve uma interação permanente entre a tectónica e a erosão fluvial. A localidade de Manteigas está localizada em pleno Vale Glaciar do Zêzere, que com a sua forma perfeita em 'U' é um dos melhores exemplos da modelação da paisagem pelos glaciares. O enorme peso e a lenta descida de um glaciar chega para transformar o vale. Vale em U é o termo empregue para definir um vale de origem glaciar e que se encontram-se nas regiões de montanha resultantes do trabalho de erosão de um glaciar que anteriormente ocupava o vale normal em forma de V.
  • Tudo isto foi a milhares de anos, que se deu a transformação geológica desta região. Mas houve uma outra transformação que demorou menos tempo, e que hoje somos fruto dessa mudança: a do ser humano. Há que recuar e voltar aos primórdios da nossa memória humana no mundo.
  • Há muitos, muitos milhares de anos, grupos humanos, vindos provavelmente do norte de África, fixaram-se na Península Ibérica. Os gelos cobriam grande parte da Península, pelo que o Homem teve de lutar duramente para conseguir sobreviver. De que se alimentavam estas comunidades?
  • o Homem primitivo caçava, pescava e recolhia aquilo que a Natureza lhe dava - folhas, raízes e frutos silvestres; por isso se diz que era caçador recoletor. Caçava, não só pequenos animais, como os de grande porte, construindo, para isso, armadilhas e instrumentos de pedra que depois também utilizava para lhes tirar a pele e partir os ossos. Quando os alimentos escasseavam, o Homem tinha de deslocar-se para outras regiões; por isso diz-se também que era nómada. Vivia ao ar livre ou construía a sua casa com paus, ramos de árvores e peles de animais. Durante o inverno, abrigava-se nas cavernas, onde ainda hoje se encontram marcas da sua existência. É o caso das pinturas rupestres, que representam geralmente animais e cenas de caça. Existem também marcas da presença humana em desenhos gravados ao ar livre. Sabemos que este Homem primitivo já conhecia o fogo, utilizando-o para cozinhar os seus alimentos, aquecer-se e afastar os animais ferozes.
  • A alteração do clima e o desaparecimento dos grandes herbívoros, que constituíam uma parte importante da alimentação do Homem, levaram-no a alterar o seu tipo de vida; embora continuasse a caçar, começou também a domesticar e a criar alguns animais. E começou igualmente a cultivar os campos, principalmente junto aos vales dos grandes rios, onde a água era abundante e a terra fértil. Surgiram, assim, a pastorícia e a agricultura.
  • Como lançou as sementes à terra, teve de esperar pelas colheitas. Tornou-a se então sedentário, ou seja, passou a viver permanentemente no mesmo lugar. Construiu habitações mais resistentes para suportar os difíceis meses do inverno. Surgiram, assim, os primeiros aldeamentos, eram cercados para as comunidades melhor se defenderem dos animais selvagens e dos grupos inimigos.
  • Os anos passam, e a evolução humana é cada vez maior. Há um constante vai e vem de novos povoadores. Vários povos, originários de outras regiões, aí chegaram e provocaram alterações no modo de viver dos seus habitantes. Entre eles podemos destacar dois grandes grupos: os Iberos e os Celtas.
  • Os Iberos, vindos provavelmente do norte de África, fixaram-se a Sul e a Oriente. Eram morenos e de estatura média. Conheciam a agricultura e a pastorícia. Sabiam trabalhar o cobre e o bronze (liga feita de cobre e estanho).
  • Os Celtas, provenientes da Europa Central, chegaram depois dos Iberos. Fixaram-se no Noroeste, na zona costeira atlântica. Eram altos, louros e de pele clara. Já trabalhavam o ferro, o que lhes permitia possuir armas e instrumentos agrícolas mais fortes e duradouros do que os dos Iberos. Eram povos aguerridos, instalaram-se no alto dos montes para melhor organizar a sua defesa.
  • A pouco e pouco, os Celtas foram-se misturando com os Iberos, dando origem aos Celtiberos. Organizaram-se em tribos (grandes grupos de famílias) que se guerreavam frequentemente.
  • Uma dessas tribos, a dos Lusitanos, habitava a região entre o rio Douro e o rio Tejo (a Lusitânia). Vivia também no alto dos montes, em castros, dedicando-se à agricultura, à pastorícia e à pilhagem das tribos inimigas. Da sua língua não restam vestígios no português atual, a não ser alguns nomes de terras.
  • Chegam os romanos um povo mais culto e avançado militarmente. Facilmente tomam toda esta região. Exceto um pequena elevação a que os tratadistas romanos da Antiguidade chamavam de Montes Hermínios (Herminius Mons) ou "Montes de Hermes" (deus greco-latino dos pastores, também conhecido por Mercúrio). Esta região terá sido o berço do guerreiro lusitano Viriato. Este lusitano era a pedra no sapato romano.
  • A associação desta serra a uma estrela pode remontar à pré-história. Investigações arqueológicas permitiram reconstruir uma imagem da vida no quinto milénio a.C, no Neolítico Antigo, quando pequenas comunidades sobreviviam à base da caça e da recoleção, a recolha de bolota e outros frutos, e pastorícia migratória. Esta última sugere que estes "pastores" passariam os meses quentes nos pastos altos da Serra da Estrela, e o inverno nas cotas mais baixas nos vales dos rios. A importância da Serra da Estrela na cultura Neolítica das Beiras pode ser observada na descoberta de que Monumentos megalíticos do vale do Rio Mondego, em particular no Carregal do Sal, foram predominantemente construídos de modo a permitir que a Serra pudesse ser vista do interior das suas câmaras. Ao mesmo tempo, a estrela Aldebaran, a mais brilhante da constelação do Touro, nasceria sobre a Serra. O seu nascer, na alvorada, aconteceria em finais de abril / inícios de maio e este evento poderia ter sido usado para marcar a transição para climas mais quentes e, portanto, para os pastos da Serra da Estrela. Esta narrativa proveniente dos registos arqueológicos encontra-se no entanto bastante próxima das lendas e mitos que explicam o nome da serra.
  • Tudo isto é bom saber, mas, para isso bastava ligar-nos a net e descobrir. Para usufruir dos mesmos locais por onde andou Viriato e os pastores calcorreiam, devemos despender de um pouco de tempo e possuir espírito de aventura. E foi precisamente isso que fizemos. Lançamo-nos a descoberta de uma serra pouco vista por quem não anda por cá a pé. Pouco depois de deixarmos de circular na rotunda e já andarmos algumas centenas de metros tivemos a nossa frente, um dos momentos altos da nossa caminhada: neve. É difícil acreditar nisto, mas as provas existem e nos dias anteriores o forte calor não a derreteu por completo, e para nós foram momentos de pura magia. Brincadeiras infantis de descontração, movimentos voadores de bolas de neve e sei lá mais o que...se fosse premeditado não corria tão bem. Foram bons estes pequenos momentos frios. Como tudo o que é bom tem principio, meio e fim e este não foi exceção. Tivemos que abalar dali e penetrar na encosta agreste. O caminho torna-se impercetível e as rochas são os pontos de passagem. Um salto aqui, outro acolá e assim se vai avançando pelo terreno fora. A estrada é a referencia do caminho e urge alcança-la sem haver acidentes, a descida, obriga o pessoal a maior atenção aos degraus e piso escorregadio, mas a permitir apreciar recantos de rara beleza, coisa que podia haver dado a inconstâncias do terreno.
  • A nossa frente surge esculpida na rocha a Senhora da Boa Estrela. Qual o motivo desta invocação?
  • A escultura, com mais de 7 metros de altura, foi elaborada por António Duarte, partindo de uma ideia do Pároco local que assistiu à demonstração de fé local quando foi implantado um Cruzeiro no ponto mais alto da imensa Serra da Estrela, e desejou prestar homenagem à Santa protetora dos Pastores que enfrentam há séculos as intempéries da agreste região.
  • Anualmente, no segundo domingo de agosto, realizam-se as Festividades de Nossa Senhora da Boa Estrela do Covão do Boi, atraindo muitos visitantes.
  • Nesse dia não éramos uns visitantes em busca de fé, apesar de haver tempo para rezar ou pedir o apoio para a nossa vida ou simplesmente aproveitar a sua sombra para descansar. Foi um pouco de tudo e ficou ao critério de cada um. Uma vez mais fizemo-nos ao caminho, ou melhor a estrada. E foi essa mesma estrada que nos levou ao engano. Não por muitos metros, mas o suficiente para sentirmos um pouco mais o calor forte sobre as nossas cabeças. Recuamos um pouco para o trilho certo. Este trilho corria através da encosta íngreme, lado a lado com a estrada mas a cotas diferentes. O piso não era muito diferente do que já tínhamos trilhado momentos antes, pedras soltas o que requeria alguma atenção.
  • Nesta zona emparedada pela encosta a temperatura fazia-se sentir ainda mais e mesmo o olhar espraiando-se na paisagem era mais desconsolador.
  • A nossa frente o Vale Glaciário da Alforfa tem uma localização precisamente oposta em relação ao Vale Glaciário do Zêzere. A barragem do Covão do Ferro que devia servir para aprisionar as águas que escorrem da encosta da Torre abaixo estava seca, podíamos ver as areias claras que cobriam o fundo claro como o pó. Neste Vale Glaciário a língua de gelo atingia 5,5 km de comprimento e dissolvia-se, devido à exposição solar, a apenas 800 metros de altitude. Neste vale é possível observar os maiores depósitos de enormes blocos graníticos em frente ao que se pensa ter sido o local de término das línguas de gelo que deram origem a este vale.
  • A estrada abandona-nos e segue noutra direção. Os nossos pés percorrem agora a encosta, ao fundo do vale de Alforfa, avista-se algumas habitações que fazem parte do complexo da Central Hidroelétrica do Covão de Ferro ou também conhecida por barragem do Padre Alfredo.
  • Andamos mais algumas centenas de metros e encontramos de novo a estrada. Atravessamos a mesma e entramos na Nave de Santo António. Estávamos agora a uma altitude de aproximadamente 1550 metros. Era hora de almoço. Espalhamo-nos pelo espaço existente, que era muito, e sombra não havia, e banqueteamo-nos com o que levamos.
  • A Nave de Santo António, constitui como que uma planura inesperada no interior da montanha, aos 1550 m, em forma de cela, embutida entre os Planaltos da Torre e das Penhas da Saúde. Por outro lado, a Nave dá início ao vale do Zêzere e ao vale de Alforfa, já que daí se emitiam as duas línguas glaciárias, com a mesma direção, mas orientações opostas.
  • Esta é uma área muito importante para o estudo da glaciação, já que aí se conservam depósitos morénicos, ou seja, blocos de dimensões variáveis envoltos em material silto-arenoso, mais fino.
  • As duas moreias mais significativas encontram-se nos rebordos Norte e sul da Nave, respetivamente, a moreia do Poio do Judeu, com uma extensão de 1,5 Km; e, a moreia de Alforfa, melhor conservada e simétrica à anterior. Constituem ambas moreias laterais na margem direita da antiga língua glaciária.
  • Do lado direito da nave antes de se dar inicio ao extenso vale do Zêzere, como que ali plantado, encontra-se o Poio do Judeu, que serve de abrigo a ovelhas e pastores por ser, dizem, a rocha maior da serra. Este corresponde a um bloco errático, isolado, com cerca de 150 m3, em área de fraco declive e que pode indiciar transporte glaciário.
  • Devido à menor exposição dos raios solares a que está exposto o Vale do Zêzere, por estar voltado para Norte, a língua glaciar que nele se desenvolveu adquiriu maior extensão, com 13Km de comprimento, sendo portanto o maior (da serra e da Europa) e o mais emblemático. As acumulações morénicas são escassas ao longo do vale, mas encontram-se moreias laterais, como a moreia do Espinhaço de Cão, na margem esquerda do vale do Zêzere, um pouco abaixo do vale da Candeeira. O espinhaço de Cão é uma crista onde houve acumulação de blocos bastante heterométricos, e que corresponde a uma fase de recessão do glaciar.
  • No máximo da glaciação, o gelo enchia o vale, atingindo uma espessura de 300 metros. Por sua vez, a base das vertentes encontra-se geralmente coberta por depósitos, numa fase posterior à fusão do glaciar.
  • Mais ou menos a meio do vale glaciar, já se notam algumas moreias de fundo. Os materiais iam sendo largados à medida que a língua ia retrocedendo. Além disso, o rio começa a encaixar-se, pelo que não consegue transportar os blocos de maiores dimensões (erosão seletiva). É possível distinguir aqueles blocos morénicos (arestas mais salientes), dos blocos que sofreram já a erosão fluvial, apresentando formas mais arredondadas.
  • Já na zona de Manteigas (Caldas de Manteigas), observou-se o designado “caos de blocos”, no meio do vale, que corresponde à moreia frontal destruída, tendo os seus constituintes sido distendidos vale abaixo pelo rio. Ora, tal vem comprovar que o glaciar terá chegado à área de Manteigas, registando aí formas da sua fusão.
  • Enquanto almoçávamos os nossos pés eram atapetados por um manto fofo de ervas: a turfeira. A Nave de Santo António, que em tempos terá sido uma lagoa glaciária, tem um ambiente hostil à atividade humana, a sua fisionomia é, no essencial, marcada pela natureza, sendo apenas utilizados por pastores os relvados naturais - cervunais - como alimento aos gados transumantes, nos meses de verão. Trata-se, portanto, de uma zona propícia à queda e acumulação das neves. É ainda importante referir que este local era a principal fonte de alimentação dos diversos glaciares de vale.
  • Estamos no andar intermédio, e aqui na Nave de Santo António predomina a vegetação rasteira de prado de erva fofa que atapetam o vale, onde correm ribeiros e pequenas linhas de água. Mas neste andar é no domínio arbóreo, correspondente ao do carvalho pardo (Quercus pyrenaica Willd.), de 800 a 1600 metros. A composição florista deste andar inclui a urze branca (Erica arborea L.), a giesteira das sebes (Cytisus grandiflorus (Brot.) DC.), a giesteira branca (Cytisus multiflorus (L’Hérit.) Sweet), o tojo gadanhos (Genista falcata L.) e o feto ordinário (Pteridium aquilinum (L.) Kuhn).
  • Mas há mais vida além das formações graníticas que se erguem majestosas no horizonte.
  • Os nossos passos seguem agora para o vale do Zêzere. Pisam um tapete fofo e são acompanhados pelo coaxar das rãs que se espraiam nos imensos charcos que povoam os nossos pés. Há vida. O olhar atento descobre, toda esta manifestação de insetos coloridos e que se deixam fotografar pachorrentamente. De longe em longe uma atrevida borboleta percorre o nosso olhar, deixando-se fotografar, mesmo que por breves momentos. É um dos melhores locais da serra para procurar aves devido ao coberto de herbáceas como: a sombria, ocorrendo também a codorniz, a petinha-dos-campos e a laverca. Mas há uma fauna rica que se espalha pelo espaço envolvente do planalto da torre, até as zonas habitacionais com condições melhores para o desenvolvimento da vida. Desta forma podemos ver, com o olhar atento e as horas convenientes podemos encontrar uma grande variedade de espécies animais.
  • Próximo do meio rural, é possível encontrar a águia-de-asa-redonda (Buteo buteo), a raposa (Vulpus vulpus), que se refugiam nos pequenos pinhais e caçam em áreas abertas; o sapo comum (Bufo bufo), que se esconde em muros e zonas arbustivas, alimentando-se nas hortas e que vai acasalar em charcos e linhas de água; a toupeira (Talpa occidentalis) que, aparecendo à superfície da terra num lameiro, poderá constituir a próxima refeição da coruja-das-torres (Tyto alba); a lagartixa ibérica (Podarcis hispanica); a lebre (Lepus capensis); a poupa (Upupa epops) e o coelho (Oryctolagus cuniculus). Nas zonas em que o estrato arbóreo é dominante, é possível encontrar a geneta (Genetta genetta), a fuinha (Martes foina), a coruja-do-mato (Strix aluco) e o pardal-francês (Petronia petronia), entre outras espécies. O meio arbustivo, habitualmente muito denso, constitui um local de refúgio para inúmeros mamíferos, como o texugo (Meles meles), e suporta pequenas aves insetívoras, como a carriça (Troglodytes troglodytes), répteis e anfíbios, como a sardanisca-argelina (Psammodromus algirus) e o sapo-parteiro (Alytes obstetricans), respetivamente. Acima dos 1600 metros, desfrutar-se de uma paisagem de características únicas em Portugal, que se impõe pela sua grandesa e rudeza. Neste meio subalpino, é possível encontrar o mocho-real (Bubo bubo) .Nas margens dos cursos de água, existe uma fauna característica, da qual fazem parte a toupeira-d'água (Galemys pyrenaicus) – um dos mamíferos mais raros de Portugal e considerado como uma verdadeira relíquia biológica; a rã ibérica (Rana iberica), o guarda-rios (Alcedo atthis), a lontra (Lutra lutra), o musaranho-de-água (Neomys anomalus) e a cobra-de-água-viperina (Natrix maura).
  • Atravessamos o planalto e ao passar o olhar em redor vimos no alto da Nave de Santo António um exemplo da força do gelo que era tal que arrastava inúmeros blocos graníticos, deixando nas extremidades das depressões onde se formaram lagos e os “Covões”, grandes aglomerações de rochedos arrastados na sua marcha lenta e poderosa força natural. É de destacar o enorme bloco granítico, conhecido como Poio do Judeu, pode ver-se na linha de horizonte, no topo do Vale Glaciar do Zêzere.
  • Nem só de caos de blocos graníticos reza a serra. Já quase no fim desta espetacular travessia, temos uma pequena capela. Também se reza nos locais construídos para visita de Deus. Mas, como parece que Deus não vem aqui há muito tempo, as capelas ou estão fechadas contra o tempo ou servem de abrigo aos pastores, como a que está e deu nome a Nave de Santo António. Aqui reza uma lenda antiga que Santo António (peregrino que atravessava a serra) foi-lhe oferecido guarida num pequeno abrigo de pastores quando anoiteceu. Recolhidas as ovelhas no abrigo e com a noite dá-se um ataque de lobos ao abrigo. O pastor temendo o pior fechou os olhos para não ver a desgraça e adormeceu. Quando acordou estava tudo intacto e alcateia toda morta. O viajante estava envolto numa luz e desaparecia. Assim nascia a capela de santo António. Abandonada por longos anos e abrigo de pastores, hoje parece recuperada junto ao longa turfeira, formada na Nave de Santo António.
  • Pela primeira vez no nosso trilho entramos no arvoredo, e diga-se, que rico arvoredo. Majestoso, sombrio, húmido e agradável. Ocupando uma das encostas do vale do Zêzere foi uma das mais belas e agradáveis passagens que tivemos neste trilho. Povoado por um sem número de árvores que de entre elas destaco o pinheiro-silvestre (Pinus sylvestris L.), vidoeiro (Betula sp.) e teixo (Taxus baccata L.). As pinhas que cobriam o chão e se misturavam com o verde do musgo que harmonicamente cobriam os blocos rochosos da encosta. Era uma visão bonita.
  • As escassas centenas de metros que nos separavam do início do vale glaciar do Zêzere depressa foram consumados. Chegamos à estrada que liga Manteigas à Torre. É um excelente local para procurar alguns passeriformes florestais, como o rabirruivo-de-testa-branca, a felosa de Bonelli, a estrelinha-de-cabeça-listada e o chapim-carvoeiro, bem como diversas espécies mais comuns. Mas a especialidade deste local é o melro-d'água.
  • O Rio Zêzere nasce em pleno coração da Serra da Estrela, O Cântaro Magro, passa pelo belíssimo Covão da Ametade. Muito antes de, mais de 200 km depois, desaguar no Tejo, de quem é o principal afluente, o Rio Zêzere percorre todo o Vale Glaciar, bem no meio do “U” formado por este Vale.
  • É difícil dizer ao certo onde é a nascente do rio até porque há muitas linhas de água dispersas que se juntam mais abaixo e que dão origem ao Zêzere. O Cântaro Magro é um relevo notável (altitude 1978 m) da serra da Estrela, situado na cabeceira do vale glaciar do rio Zêzere, destacando-se do planalto da Torre. Do sopé do Cântaro Magro no Covão d'Ametade até ao seu cume existe um desnível (parede vertical) de aproximadamente 500 m. Partindo do princípio que é nas encostas do Cântaro magro, e que engrossam no Covão da Ametade. É uma depressão onde repousam sedimentos originando uma pequena planície naquilo que foi uma antiga lagoa de origem glaciar e o desenvolvimento de vegetação arbórea, por exemplo, bétulas. Localiza-se a 1420 m de altitude, na base do Cântaro Magro, onde vem passar o rio Zêzere, poucos metros abaixo da sua nascente.
  • Entramos agora no dito vale glaciar do zizie e junto a este caminhamos embalados pelo gorgolhar da água. O calor é intenso e a ânsia de chegar a uma sombra, faz-nos acelerar o passo.
  • A paisagem muda, são abundantes nas zonas baixas os matos de giestas, bem como formações de rosmaninho, de urze branca e vegetação rasteira que pelo meio avançamos. O caminho não dá para enganar, uma vez que recentemente foi limpo. Em amena cavaqueira chegamos a uma casa junto a um arvoredo refrescante. Um tanque de água fresca faz as delícias de quem passa e chega nesse quente dia.
  • Fizemos uma paragem junto a casa no rio. Um exemplo de uma casa típica serrana. Para se defenderem dos rigores do clima em pequenas e curiosas habitações – os casais - construídas em locais abrigados junto às linhas de água. É utilizada a pedra nas paredes e o colmo nas coberturas. Humildes e seculares, o encanto dos telhados cobertos de líquenes, da atmosfera límpida em que se encontram.
  • Límpidas são também as águas que correm montanha abaixo e que neste dia fez as delícias de quem delas se aproximou. Junto ao nosso trilho havia uma praia fluvial, pequena, mas é sempre uma praia, onde se espraiavam e descansavam outros como nós que tiraram o dia para se misturar pela serra.
  • A vegetação não era muito abundante, limitava-se as margens do curso de água e conforme o seu curso aumentava também esta ia engrossando. Não se via grandes bosques como se encontra no Geres. Da floresta primitiva, que revestia as encostas da montanha, quase nada existe ou já pouco resta alguns vestígios em pequenas manchas raras e dispersas. a ocupação intensa por grupos humanos levou à transformação das florestas em zonas de pastagens. Daí que a cobertura vegetal natural da Estrela tenha sido destruída desde tempos remotos, restando apenas alguns núcleos de matagal em zonas de mais difícil acesso. Pode-se, no entanto, encontrar espécies que têm aqui representação com interesse científico como a Campanula herminii, verdadeiro símbolo da Estrela, a Saxifraga spathularis, a Genista florida, e várias outras giestas.
  • É assim a Estrela, uma montanha repleta de história que importa conhecer. Há ainda a salientar que a serra da Estrela é uma zona de paisagem integrada no Parque Natural da Serra da Estrela, que após a sua constituição em 16 de julho de 1976 se instituiu como a maior área protegida em solo português.
  • Chegamos ao autocarro e o mundo parece outro, citadino e mais agradável. A temperatura controlada…que diferença.
  • Há um assunto que ainda não falei: o queijo da serra” o embaixador desta região”. O queijo da Serra da Estrela, considerado o imperador dos queijos portugueses, é produzido nesta região, que também possui uma raça de cães de guarda, o cão da Serra da Estrela que se enquadra no tipo molosso tal como o seu parente São-bernardo. Ambos se encontram ligados ao tradicional pastoreio da ovelha bordalesa da Serra da Estrela. A pastorícia surge na serra da Estrela como uma atividade antiquíssima, certamente ligada aos primeiros povos após o Neolítico. O pastoreio, com os produtos ligados à atividade, como a lã e o queijo, foram o suporte da economia serrana durante séculos; com eles se construíram a economia e a cultura de uma sociedade ligada ao uso dos recursos da Estrela. Com a evolução deste século, as coisas modificaram-se, sobretudo nas últimas décadas, em que a sociedade de consumo penetrou fortemente em todo o interior. A desertificação humana da Serra tem levado ao abandono das práticas tradicionais, diminuindo consequentemente a genuinidade do produto queijo da Serra da Estrela, na sua versão de produção e venda massificadas que hoje encontramos nas grandes superfícies comerciais. É no entanto possível, ainda hoje, adquirir localmente um queijo de produção menos intensiva que mantém as características originais.
  • A serra é sinónimo de lobo. O animal mais notável, que chegou a atingir apreciáveis efetivos, mas que entrou em regressão com a diminuição do pastoreio.
  • O autocarro partiu e agora dirigimo-nos a Manteigas, para se ou não se para. A maioria decidiu não parar lá, avançamos em direção da Guarda.
  • Não muito longe dali um espaço agradável a face da estrada, foi um convite a uma paragem. Ai saboreamos uma bebida fresca ou quem estava mais necessitado a respetiva” medicação”. Ficou ao critério de cada um ou conforme a prescrição medica. Houve ainda a oportunidade de degustar um petisco da região ou deste estabelecimento de comércio: peixe gay ou rei em molho de escabeche. Aprovei (ou os peixes estão na fase adulta ou então é um crime).
  • Bom, regressamos a casa, mais mortos do que vivos, mas felizes e contentes.
  • Até uma próxima.
  • Agostinho santos (Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.)
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